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Formação em risco: a ameaça da má qualidade no ensino médico

Entrevista com o Conselheiro do Cremesp Dr. Edson Umeda*, publicada na edição 173 da revista digital Notícias Médicas, órgão informativo da Casa do Médico Santo André

A abertura desordenada de faculdades de Medicina no Brasil, muitas vezes autorizadas por liminares judiciais sem análise técnica do Ministério da Educação, tem gerado forte reação de entidades médicas em todo o país. O Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo (Cremesp) foi ao Conselho Nacional de Justiça (CNJ) solicitar medidas para coibir esse avanço perigoso, que expõe alunos a cursos sem estrutura adequada e compromete a formação médica e, por consequência, a assistência à população. Como se não bastasse, um recente edital lançado pelo Ministério da Saúde, com o objetivo de ampliar os programas de Residência Médica em regiões carentes, trouxe à tona uma nova preocupação: a possível repetição do mesmo modelo falho da graduação médica, agora na formação de especialistas. Nesta edição da revista digital Notícias Médicas, conversamos com Conselheiro do Cremesp Dr. Edson Umeda, que analisa os impactos desse cenário sobre a qualidade da Medicina no país e os riscos para os estudantes e, consequentemente, para a população.

O Brasil vive um cenário alarmante com o número de faculdades de Medicina, superado apenas pela Índia. Na sua visão, o que explica essa expansão desordenada e quem são os principais beneficiários desse modelo?
A expansão desordenada dos cursos de Medicina no Brasil é reflexo de uma política educacional que, em muitos momentos, priorizou interesses mercadológicos em detrimento da qualidade formativa e da responsabilidade sanitária. Não raro, decisões políticas permitiram a abertura de escolas médicas em regiões sem estrutura hospitalar ou campo de estágio adequado, sem um plano formativo coerente, nem compromisso com o ensino ético e técnico. O resultado tem sido a proliferação de cursos privados com fins lucrativos, tornando-se verdadeiros negócios educacionais. Os maiores beneficiários são conglomerados empresariais, enquanto os maiores prejudicados são os estudantes — que investem em uma formação, por vezes, precária — e a sociedade, que poderá ser atendida por profissionais malformados.

O CREMESP apontou a existência de uma “indústria mafiosa de liminares” para abertura de cursos de Medicina. Quais os riscos dessa judicialização da formação médica para os alunos, a sociedade e o próprio Judiciário?
O uso recorrente de decisões judiciais para autorizar a criação de cursos médicos fora dos parâmetros técnicos regulatórios compromete profundamente o ensino médico. A chamada “indústria de liminares” não apenas enfraquece o papel dos órgãos reguladores, como expõe os alunos a estruturas frágeis de ensino e compromete a segurança assistencial, além de colocar o Judiciário em uma posição de interferência técnica indevida, fragilizando sua credibilidade institucional e perpetuando distorções que impactam diretamente a saúde pública. Saliento igualmente que é importante o compromisso com os alunos e familiares que “confiam” nestas instituições no início do curso, muitas vezes sem a menor noção de que se trata de um curso mantido perante o Ministério da Educação por meio de liminar, que pode ser objeto de reversão judicial a qualquer tempo.

Como a atuação do CNJ — Conselho Nacional de Justiça, a partir da solicitação do CREMESP, pode contribuir para frear a abertura indiscriminada de cursos médicos?
A atuação do CNJ, cujas resoluções possuem força normativa dentro do Poder Judiciário e, assim, caráter de obrigatoriedade, é fundamental. A posição do CREMESP é de que o CNJ edite normativas que coíbam a concessão de inúmeras liminares para essa finalidade, como vivemos na atualidade.

O senhor acredita que a emissão de orientações aos magistrados será suficiente?
As orientações do CNJ aos magistrados são um passo importante, mas não bastam por si só. A solução do problema exige articulação entre os Ministérios da Saúde e da Educação, o Ministério Público, os Conselhos de Medicina e as universidades. Só um esforço conjunto poderá garantir que a formação médica continue pautada pela qualidade, ética e responsabilidade social. O direito de ensinar Medicina não pode ser desvinculado do dever de formar bem, e isso exige critérios, supervisão e compromisso institucional.

Muitos cursos abertos por liminares funcionam sem estrutura adequada, corpo docente qualificado ou hospitais de ensino vinculados. O que deveria ser exigido como mínimo para que uma nova faculdade de Medicina funcione?
Para que um curso de Medicina funcione com responsabilidade, é imprescindível que tenha hospital de ensino vinculado, corpo docente qualificado (com mestres e doutores), laboratórios, ambulatórios e campo de prática diversificado; também deve dispor de projeto pedagógico estruturado e ser submetido à avaliação periódica. Não se pode ensinar Medicina sem pacientes, sem professores presentes, sem ética e sem estrutura, sendo que a ausência desses requisitos é incompatível com o compromisso social da profissão médica.

Como o senhor avalia a relação entre a qualidade da formação médica e os erros assistenciais ou deficiências no atendimento à população? Já é possível mensurar esse impacto?
Sim, é possível e necessário mensurar essa relação. Uma formação médica deficiente aumenta a probabilidade de erros assistenciais, atrasos diagnósticos, condutas inadequadas e, em casos mais graves, danos irreversíveis ao paciente. A literatura científica nacional e internacional confirma que o preparo inadequado está na base de muitos eventos adversos evitáveis no cuidado à saúde.

O edital do Ministério da Saúde, que amplia programas de Residência Médica em regiões carentes, acende um alerta entre entidades médicas. Qual é o principal problema da proposta? É a infraestrutura dos hospitais credenciados, a qualidade do ensino ou ambos?
Ambos. O edital corre o risco de repetir o erro da graduação, ou seja, expandir sem planejar. Temos a certeza de que muitos dos hospitais indicados não têm complexidade assistencial, preceptoria adequada ou volume de casos clínicos necessários para a formação plena. É preciso garantir que a expansão da residência não seja uma resposta simplista à escassez de especialistas, mas sim uma política sólida de interiorização com qualidade e responsabilidade.

Apesar de bem-intencionada, a iniciativa do governo pode provocar um efeito semelhante ao da graduação em Medicina, ou seja, a Residência corre o risco de se transformar em um diploma mal lastreado?
Se a residência for tratada apenas como uma ampliação numérica e não como um processo formativo de excelência, corre-se o risco de banalizar o título de especialista. Entendemos que o Programa de Residência Médica deve ser uma formação prática, profunda e supervisionada; portanto, um diploma, por si só, não garante competência, pois nosso entendimento é que o que valida o título é o percurso vivido, a responsabilidade do preceptor e a estrutura do serviço formador.

Quais critérios o senhor considera indispensáveis para que um programa de Residência Médica seja efetivamente formador de especialistas qualificados?
Um bom programa de residência deve ter hospital com volume e diversidade de atendimentos, preceptores experientes e presentes, estrutura para ensino teórico e prático, projeto pedagógico bem definido e avaliações contínuas. Consideramos também quesito essencial que a instituição valorize o residente como aluno e não como mão de obra barata. O respeito à formação e ao tempo de aprendizado é o que transforma médicos em especialistas competentes e éticos.

O Brasil tem hoje uma distribuição muito desigual de médicos especialistas, com maior concentração no Sudeste. Como enfrentar esse desequilíbrio sem comprometer a qualidade da formação e da assistência?
A desigualdade regional na distribuição de especialistas é um problema estrutural. Interpreto que a resposta passa por três pilares: estrutura assistencial adequada no interior, formação médica de qualidade descentralizada e políticas públicas que valorizem a carreira médica com fixação regional. Destaco que interiorizar a assistência não pode significar interiorizar a precariedade. É possível formar e fixar bons profissionais fora dos grandes centros, desde que haja planejamento, supervisão e respeito ao rigor técnico. Enfatizo a questão da criação da carreira do médico, pois entendemos que o problema não reside no número de médicos, mas certamente na distribuição demográfica e, portanto, a carreira médica de Estado contribuiria para incentivar essa nódoa existente.

A Associação Paulista de Medicina (APM) e outras entidades médicas têm sinalizado que vão denunciar programas de Residência de qualidade duvidosa. Quais mecanismos de controle e fiscalização são necessários para garantir que isso aconteça de forma efetiva? E o que os médicos e estudantes podem fazer nesse processo?
A denúncia de programas irregulares é um instrumento legítimo de proteção à profissão e à sociedade. Para que esse controle funcione, é necessário fortalecer a atuação da CNRM, ampliar os canais seguros de denúncia, garantir vistorias técnicas regulares e responsabilizar instituições que formam sem qualidade. Médicos e residentes têm papel crucial: devem denunciar irregularidades, exigir formação ética e participar ativamente do processo de fiscalização. Formar bem é um dever coletivo.

Dr. Edson Umeda*: Graduado em Medicina pela Faculdade de Medicina de Marília (1988). Especialista em Anestesiologia pelo Centro de Ensino e Treinamento da Santa Casa de Misericórdia de Marília, com reconhecimento da Sociedade Brasileira de Anestesiologia e da Associação Médica Brasileira. MBA Executivo em Administração: Gestão de Clínicas, Hospitais e Indústrias da Saúde pela Fundação Getúlio Vargas. Mestre em Bioética pelo Centro Universitário São Camilo de São Paulo.

Foi Diretor Técnico de Departamento no Hospital Infantil Cândido Fontoura. Atualmente, é Diretor do Departamento Regional de Saúde I da Grande São Paulo – Secretaria de Estado da Saúde e docente no Curso de Medicina do Centro Universitário São Camilo.

Ex-Presidente da Sociedade de Bioética de São Paulo. Presidente da Associação Paulista de Medicina – Regional Osasco. Conselheiro Regional de Medicina do Estado de São Paulo (CREMESP). Membro da Câmara Técnica de Anestesiologia do CREMESP. Coordenador da Câmara Técnica Temática de Bioética e do Centro de Bioética do CREMESP.

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